Estudo inédito brasileiro, publicado no The Lancet Regional Health – Americas, revela que é possível erradicar o câncer de colo de útero

O câncer de colo de útero é um dos poucos que pode ser erradicado, pois decorre de uma infecção persistente pelo vírus HPV, contra o qual existe vacina e que também é detectável por meio de exame preventivo antes que cause o tumor1. No entanto, a baixa adesão das mulheres ao exame periódico e de meninas e meninos à vacina fazem com que uma brasileira morra pela doença a cada 90 minutos2, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), sendo 6,5 mil mortes2 e 16,5 mil novos casos2 ao ano. Trata-se do terceiro tipo de câncer mais comum entre mulheres2, sendo o primeiro na região Norte do país2, e o quarta que mais mata2. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu metas para a erradicação da doença1 e aponta que, em 2020, mais de 500 mil mulheres foram diagnosticadas e quase 342 mil morreram, a maioria em países pobres3.

Para transformar essa realidade e gerar evidência científica robusta, com dados de vida real, que possa servir de base para novas políticas públicas, mais eficientes, o Centro de Atenção Integral a Saúde da Mulher (CAISM) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a Prefeitura Municipal de Indaiatuba, cidade do interior de São Paulo de 256 mil habitantes, e a Roche Diagnóstica uniram forças. Os primeiros resultados foram publicados no dia 01 de novembro pela revista científica The Lancet Regional Health – Americas4 [https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2667193X21000806] e possibilitam preencher as duas grandes lacunas relacionadas aos programas existentes, que são onerosos e de baixíssimo impacto na mortalidade por câncer de colo, segundo os pesquisadores.

A primeira delas é a falta de programas organizados de rastreamento, que implica na baixa adesão das mulheres. A outra é a necessidade de substituir a citologia convencional (exame de Papanicolau) por um teste de HPV baseado em DNA, que detecta de forma automatizada as cepas do vírus que causam o câncer, sem espaço para dúvidas na interpretação dos resultados. No mesmo estudo, a utilização do teste de HPV já teve seu custo-efetividade comprovado5. Enquanto o teste de HPV tem sensibilidade elevada, a citologia tem performance mediana, podendo escapar casos de lesões precursoras e até câncer já estabelecidos.

Ambas as lacunas hoje são sinônimos de diagnósticos tardios, comprometimento da qualidade de vida, mortes e desperdício de recursos pelo sistema de saúde. Inconformados com este cenário, pesquisadores da Unicamp propuseram um programa de prevenção alinhado com os mais modernos existentes, em um estudo de demonstração na vida real. A Prefeitura de Indaiatuba viabilizou a participação das mulheres da cidade que tinham entre 25 e 64 anos, usuárias do SUS, por meio de campanhas, informações, busca ativa e estrutura para a realização dos testes e acompanhamento, enquanto a Roche entrou com a oferta dos testes DNA-HPV – num total de 16.384 já realizados. O CAISM da Unicamp conduziu todo o protocolo científico do estudo e assessorou a condução do programa municipal.

Resultados

Após 30 meses de atividade do Programa de Rastreamento do Câncer de Colo de Útero com teste de DNA-HPV (outubro de 2017 a março de 2020), mais de 80% da população-alvo projetada foi coberta e a conformidade dos testes de HPV realizados com a idade foi de 99,25%, em comparação com 78% obtida no programa prévio com citologia (método tradicional nos 30 meses prévios, de outubro de 2014 e março de 2017 e envolveu 20.284 mulheres). O programa apresentou 86,8% de testes negativos e 6,3% de indicações de colposcopia, com 78% de colposcopias realizadas. Foram detectadas 21 mulheres com câncer de colo, com idade média de 39,6 anos e 67% dos casos em estágio inicial, em comparação com 12 casos de câncer de colo detectados pelo rastreamento com Papanicolau, com idade média bem superior, de 49,3 anos, e apenas um caso em estágio inicial.

A detecção do câncer nas mulheres que fizeram o teste de DNA-HPV foi antecipada em 10 anos, comparando-se a média de idade do diagnóstico quando era feito o método tradicional, o que explica o maior índice de casos iniciais. Além disso, muitas das mulheres que participaram do estudo simplesmente deixaram de desenvolver o câncer. Isso porque, se o teste dava positivo para HPV16 e/ou HPV18, que são responsáveis por 70% dos casos de câncer de colo de útero6, a mulher era encaminhada para um outro exame, conhecido como colposcopia, a partir do qual, se havia alteração, era possível realizar um tratamento curativo e preventivo da lesão inicial, pré-câncer. Aquelas que não tinham lesão pré-cancerosa, faziam o acompanhamento com um intervalo menor para detectá-las no início, caso surgissem.

Quando o teste era negativo para HPV16 e/ou HPV18, mas positivo para 12 outros tipos de HPVs de alto risco, agrupados, era realizada com citologia em meio líquido e, se alterado, também a mulher era encaminhada para colposcopia e passava a ser acompanhada mais de perto.

Por outro lado, caso o teste seja negativo para todos os tipos de HPV, de acordo com as diretrizes internacionais, a mulher pode aguardar a repetição do teste em cinco anos com segurança. Diferentemente do programa com citologia tradicional, após dois resultados normais consecutivos, precisa ser repetida a cada três anos. Essa medida, a partir da adoção de um teste mais preciso, permite a aplicação otimizada dos recursos de saúde, como já demonstrado em outro estudo realizado no mesmo programa utilizando informações de vida real e no âmbito do SUS5.

Publicado em maio de 2021, na Plos One, (https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0251688) o estudo de avaliação econômica do teste de genotipagem de HPV – quando comparado ao papanicolaou – identificou que a tecnologia é capaz de gerar, além de melhores resultados clínicos, melhores custos. Muitas inovações em saúde costumam vir associadas a um grande aumento nos custos, mas o grupo de pesquisadores provou que este caso é diferente. A mudança por uma tecnologia muito mais avançada acaba resultando em uma redução de U$$37,87 por ano de vida ganho com qualidade de vida.

Lições aprendidas

O Dr. Júlio Cesar Teixeira, pesquisador principal do estudo e diretor da Oncologia do Hospital da Mulher, CAISM, Unicamp, conta que uma pesquisa como esta é inédita por envolver a população de mulheres de uma cidade inteira, sem seleção e por meio do SUS, e gerar dados comparativos da vida real. “É muito diferente do que a ciência já tinha realizado, que eram em ambientes de estudo mais controlados ou experiências pontuais, principalmente em países de mais alta renda. A partir desses resultados publicados no The Lancet Regional Health – Americas, mostramos que é possível salvar milhares de vidas no Brasil e no mundo e efetivamente erradicar o câncer de colo de útero com as estratégias e as ferramentas diagnósticas corretas, mesmo em países de menor renda”, afirma.

Um estudo clínico que virou política pública

A Prefeitura Municipal de Indaiatuba criou uma Portaria7 para instituir no Sistema Único de Saúde (SUS) o rastreamento exclusivamente por meio do teste de DNA-HPV, substituindo o Papanicolau, em 2017. Paralelamente, promoveu as condições para a realização do estudo, aliadas aos testes da Roche e a um software desenvolvido pela empresa multinacional e implantado em todas as unidades de saúde da cidade, o Tracking for Life, que foi essencial para organizar o novo fluxo de amostras e resultados na cidade, capacitar os profissionais de saúde para usar os novos algoritmos, garantir que os exames fossem feitos nos intervalos adequados, registro online das pacientes para evitar dependência dos dados em papel, além de estatísticas e relatórios. Para se ter uma ideia, a máquina analisa o teste e a própria ferramenta comunica o sistema de informática da rede de saúde da Prefeitura sobre o resultado, economizando uma série de recursos financeiros antes alocados.

Outra decisão da Prefeitura, amparada pela assessoria dos pesquisadores da Unicamp, foi modificar a sua estratégia de imunização contra o HPV, antecipando as vacinas dos meninos a partir dos 9 anos, como já ocorria com as meninas. Também tomou medidas para que a cobertura vacinal atingisse o mínimo necessário para conter a transmissão do vírus, 80%, diferentemente do que ocorre no restante do Brasil, principalmente pelo estigma associado ao início da vida sexual. A principal delas foi voltar a oferecer a vacinação nas escolas, a partir de 2018, com a vacina que previne câncer.

“Nosso objetivo foi realmente inaugurar uma política pública completa e consistente para erradicar o câncer de colo de útero, que é uma doença 100% evitável. Tenho certeza de que esses dados serão úteis, a partir de hoje já, para muitos outros gestores de saúde interessados em salvar vidas e em utilizar da maneira mais adequada os recursos disponíveis para a saúde, com responsabilidade e coragem”, diz o Dr. Túlio José Tomas, médico ginecologista e vice-prefeito de Indaiatuba. Daqui a dez anos, a expectativa é de que não ocorram mais casos da doença na cidade.

Para Carlos Martins, CEO da Roche Diagnóstica, empresa associada à CBDL, a experiência representa uma excelente oportunidade para mostrar que as políticas públicas podem ser eficientes quando bem planejadas e executadas de forma colaborativa, inclusive com a iniciativa privada, o que passa necessariamente pela digitalização da saúde e uso inteligente de dados. “Como empresa de biotecnologia 100% focada em inovação, desenvolver soluções diagnósticas só faz sentido se for para transformar a vidas das pessoas e das famílias. Dessa forma, com base em nossa expertise em medicina personalizada e no nosso propósito de fazer agora o que as pessoas precisarão amanhã, procuramos colaborar decisivamente em programas como esse, que contribuem para a sustentabilidade dos sistemas de saúde”, destaca. (Com informações da Roche Diagnóstica – 11.01.22)

Referências:

1. WHO: Global strategy to accelerate the elimination of cervical cancer as a public health problem [17NOV2020]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240014107. Acessado em 28/10/2021.

2. INCA. Câncer do colo do útero. Disponível em:  https://www.inca.gov.br/tipos-de-cancer/cancer-do-colo-do-utero. Acessado em 02/03/2021.

3. IARC.WHO.Cancer Today. Disponível em: https://gco.iarc.fr/today. Acessado em 28/10/2021.

4. Teixeira JC, Vale DB, Campos CS, Bragança JF, Discacciati MG, Zeferino LC. Organization of cervical cancer screening with DNA–HPV testing impact on early–stage cancer detection: a population–based demonstration study in a Brazilian City. The Lancet Regional Health – Americas. 2021. [https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2667193X21000806]

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