Junho: um mês de júbilo para a Triagem Neonatal

Antes da introdução da triagem neonatal, a fenilcetonúria (PKU), uma doença descrita por Fölling em 1934, era um distúrbio devastador no qual os indivíduos afetados apresentavam severo comprometimento neurológico e intelectual e eram destinados a uma vida de cuidados especiais, e quase sempre afastados do convívio social ou abrigados em instituições para “deficientes mentais”. A triagem neonatal só começou depois que foi demonstrado que aqueles indivíduos com PKU poderiam ser tratados com uma dieta modificada, que se iniciada antes do dano neurológico, posteriormente levariam uma vida normal.

A primeira produção de uma dieta e a demonstração de sua eficácia foi, portanto, um marco importante na história da PKU e da triagem neonatal, e ocorreu em Birmingham, Reino Unido, em 1951 que naquela época já possuía elevados padrões de Pediatria, inclusive com uma clínica especial para crianças com dificuldades de aprendizagem. Os pioneiros desta dietoterapia foram uma menina com PKU de dois anos de idade chamada Sheila Jones, sua mãe Mary e três dedicados profissionais de saúde do Hospital Infantil de Birmingham (BCH): a bioquímica Evelyn Hickmans (1882–1972), o Pediatra John Gerrard (1916–2013) e um jovem médico alemão, Horst Bickel (1918–2000), que chegou ao BCH em 1949 para fazer seu doutorado no laboratório da doutora Hickman, na área dos distúrbios de aminoácidos. Juntos, eles proporcionaram a possibilidade da mudança do curso natural da doença PKU para as crianças em todo o mundo. Sem o trabalho deles, o tratamento efetivo da PKU teria sido retardado e o estímulo necessário para a introdução precoce da triagem neonatal em toda a população também não teria ocorrido tão rapidamente. Isso teria sido prejudicial não apenas para aqueles com PKU, mas também para os demais
com outras condições posteriormente incluídas em programas de triagem neonatal.

Os testes de triagem neonatal tiveram início na década de 1960, quando o Dr. Robert Guthrie (1916–1995), médico microbiologista e professor associado de pediatria na Universidade de Buffalo, desenvolveu com a ajuda de Ada Susi, enfermeira técnica-chefe, um exame laboratorial de inibição bacteriana para detectar o nível do aminoácido fenilalanina, que já se sabia ser a causa da doença metabólica hereditária, a PKU. A vantagem deste teste, sobre os outros disponíveis a época, era detectar precocemente a PKU a tempo de introduzir a dieta restritiva do aminoácido fenilalanina para evitar as sequelas neurológicas da doença.

A facilidade de obtenção de amostras de sangue por punção do calcanhar dos recém-nascidos, daí o nome de “Teste do Pezinho”, acondicioná-las em papel filtro na forma de gotas secas de sangue, tornaria seguro o transporte destas amostras biológicas para laboratórios especializados, até mesmo por longas
distancias, sem a necessidade de refrigeração. A genialidade do teste desenvolvido pelo Dr. Guthrie estava em sua simplicidade e elegância, beneficiando milhares de bebês com o diagnóstico precoce. Estima-se que em todo o mundo, desde o início dos programas de triagem massiva a partir de 1963 nos Estados Unidos da América, cerca de 60.000 crianças com PKU se beneficiaram com a intervenção precoce e mudança de suas vidas.

Em meados da década de 1960, JMG Wilson, do Ministério da Saúde da GrãBretanha, e G. Jungner, do Sahlgren’s Hospital de Gotemburgo, Suécia, compilaram um conjunto de critérios que seriam usados para determinar a implantação de programas de triagem. O boletim com os critérios e a recomendação da implantação, publicados pela Organização Mundial de Saúde em 1968, é considerado um clássico da literatura de saúde pública. Wilson e Jungner, definiram os principais critérios da triagem e elucidaram os
princípios que devem orientar os seus esforços, sendo que a existência de um tratamento eficaz, eficiente e disponível para todos é um dos critérios essenciais para que uma doença seja incluída.

Os programas de triagem neonatal têm um importante impacto na saúde pública, tendo sido reconhecidos pelo CDC (Centers for Disease Control and Prevention) em seu relatório semanal de Morbidade e Mortalidade de 20 de maio de 2011, entre as “Dez Grandes Conquistas de Saúde Pública”. A
qualidade destes programas não deve ser analisada somente pelo exame laboratorial que detecta precocemente a suspeita de uma doença que está por se manifestar, mas por todo o processo de esclarecimento contínuo de sua importância, período adequado da primeira de coleta e a celeridade até a
obtenção do diagnóstico definitivo, disponibilidade de centros especializados para acolhimento, tratamento, aconselhamento e acompanhamento, em muitos casos, durante toda a vida.

É inegável que a evolução tecnológica laboratorial vem permitindo a inclusão de várias outras doenças candidatas aos programas de triagem neonatal e que os programas têm avançado para detecção de doenças raras com possibilidade de tratamento precoce para prevenir danos à saúde, seguindo o
mesmo conceito da primeira doença proposta há cerca de 60 anos, a PKU. Também é igualmente inegável que os incentivos ao desenvolvimento de novas terapias para doenças raras têm impulsionado os programas de triagem neonatal como ferramenta de diagnóstico precoce deste grupo de doenças.

Um incentivo governamental de relevância se deu quando o Congresso americano aprovou o Orphan Drug Act de 1983 para estimular o desenvolvimento de medicamentos para doenças raras e a FDA (Food and Drug Administration), no mesmo período, instituiu seu Programa de Aprovação Acelerada para permitir a liberação antecipada de medicamentos que tratam condições graves (Accelerated Approval Pathway). Essas iniciativas possibilitaram que os tratamentos e ensaios clínicos para doenças raras
aumentassem de forma significativa, ampliando assim o número de condições candidatas para o diagnóstico precoce através da Triagem Neonatal.

A tecnologia de Espectrometria de Massas em Tandem (MS/MS) trouxe a bioquímica genética para a triagem neonatal e consigo a possibilidade da análise simultânea de um painel de aminoácidos e de acilcarnitinas, que tornou possível a detecção de cerca de 40 diferentes doenças metabólicas
hereditárias e mais recentemente a genética molecular introduziu a era genômica, que traz consigo a possibilidade de diagnosticar centenas de doenças raras e nos oferecer novas oportunidades terapêuticas. Juntamente com esse novo potencial, é necessário reforçar a importância há muito reconhecida dos critérios de Wilson e Jungner, que embora tenham resistido aos avanços ao longo do tempo, foram revisados após 40 anos, de forma a serem interpretados de maneira diferente com as informações adicionais disponibilizadas pelos testes genômicos. Os testes genômicos tem potencial de aumentar significativamente o número de condições rastreadas, porém se implementados isoladamente como teste primário de triagem terão muitos desafios de interpretação e éticos a superar.

Por fim, de acordo estimativas apuradas em 2020 pelas Nações Unidas-ONU, cerca de 140 milhões de bebês nascem no mundo a cada ano, destes, 50 milhões passam por alguma forma de Triagem Neonatal por meio de testes em sangue seco em papel de filtro. Embora seja um número expressivo de recém nascidos beneficiados, isso corresponde a pouco mais de um terço do total de nascidos vivos e demonstra o tanto que resta a fazer. Esta constatação motivou a criação no ano de 2021 de uma Força-Tarefa sobre Triagem Neonatal Global, com a união de esforços da Federação internacional de
Química Clínica (IFCC) e da Sociedade Internacional de Triagem Neonatal (ISNS) em prol da implantação ou aprimoramento de programas de Triagem Neonatal em países em desenvolvimento.

O que há para se comemorar em junho na Triagem Neonatal?

Em todo o mundo no dia 28 de junho se comemora o Dia Internacional da Triagem Neonatal e da Conscientização da PKU. Essa data também marca o dia do aniversário de dois pioneiros da Triagem Neonatal: Dr. Horst Bickel e Dr. Robert Guthrie.

Os testes de triagem neonatal foram disponibilizados no Brasil na segunda metade da década de 1970 por laboratórios independentes. A partir do ano 2001 uma portaria ministerial publicada em 06 de junho criou o Programa Nacional de Triagem Neonatal – PNTN. A partir de então, no dia seis e durante todo o mês de junho se comemora o “Teste do Pezinho” cuja finalidade é conscientizar a todos sobre a importância da triagem neonatal como ação preventiva de danos à saúde dos bebês. Uma nova lei de maio de 2021 abre espaço para o aprimoramento do PNTN em nosso país.

  • Por Dr. Armando Fonseca, MD e MBA, especialista em Pediatria e Patologia Clínica/Medicina Laboratorial Coautor do “Manual de Triagem Neonatal” Editora Rúbio 2006; Fundador e atual diretor médico do laboratório DLE – uma empresa que integra do Grupo Fleury; Implantou os laboratórios institucionais de Triagem Neonatal da Apae Rio e Salvador; Especialista em Triagem Neonatal nomeado pela SBAC (Sociedade Brasileira de Análises Clínicas) como representante do Brasil na Task Force on global NBS IFCC-ISNS; Sócio fundador, ex-presidente e membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo – SBTEIM; Ex-presidente e conselheiro da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial – SBPC/ML.

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