As Doenças Raras e os alimentos que salvam vidas

Por Carlos Eduardo P. L. Gouvêa *

Todos já ouviram falar do Teste do Pezinho, mas nem todos sabem exatamente o que é e para o que serve. Parte essencial do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) (1), o Teste do Pezinho é um dos primeiros exames a que um bebê é exposto e tem uma finalidade muito nobre: detectar um possível Erro Inato do Metabolismo (EIM) ou uma enfermidade – muitas vezes fatal – de origem genética.

Se realizado nas primeiras 48 horas do nascimento, a título de triagem em todos os bebês nascidos vivos, ele permite detectar muitas doenças que impedem o normal funcionamento das vias metabólicas, por deixarem de metabolizar (processar) diversos aminoácidos ou ácidos graxos. Ao se acumularem no organismo, exatamente por não terem sido processados no momento certo, muitos destes aminoácidos (que são as menores partículas que formam as proteínas) acabam se acumulando, e passam a exercer um efeito neurotóxico e que pode levar a criança a ter convulsões, retardo mental e até mesmo levar a óbito nos casos mais severos.

Atualmente, o Teste do Pezinho oferecido pelo SUS abrange seis enfermidades diferentes, podendo ser também na versão “Expandida ou Ampliada”, que chega a mais de 50 doenças, já disponível em algumas regiões (como pelo governo do Distrito Federal, por exemplo) e na rede de Saúde Suplementar. O fato é que o teste precoce e preciso pode de fato mudar uma vida, ao proporcionar a chance de ter a informação que permitirá o acesso à terapia medicamentosa ou mesmo apenas nutricional.

Atualmente, praticamente todas as aminoacidopatias podem ser detectadas precocemente por estes testes. No caso do SUS, a única que consta do PNTN é a fenilcetonúria, por ser mais prevalente em nosso país (na ordem de 1:15.000, aproximadamente), e refere-se a uma incapacidade de metabolizar a fenilalanina,  aminoácido essencial, que passa a se acumular, impedindo inclusive a sua transformação em tirosina, também necessária para o desenvolvimento humano. O excesso da fenilalanina e a falta da tirosina no organismo provocarão, ao longo do tempo, dificuldades para comunicação e desenvolvimento, agressividade crescente e retardo mental irreversível.

Outras aminoacidopatias podem também ser detectadas precocemente graças a tecnologias já disponíveis como aquelas fornecidas por espectrômetros de massa por tandem, que podem verificar mais de 50 doenças com uma única amostra de sangue em papel filtro, colhido após os primeiros aleitamentos do bebê, no caso do teste expandido.

Assim, graças ao avanço da tecnologia diagnóstica, pode-se detectar precocemente, em processos de triagem neonatal, várias doenças que possuem protocolos e diretrizes de tratamento. Caso a criança não tenha tido a chance de ser exposta a uma triagem completa, o teste poderá ser ainda útil mesmo que em caso de diagnóstico tardio, para atenuar eventualmente algumas das sequelas já existentes.

Alimentos ultra processados salvando vidas

Dentro dos alimentos para fins especiais, há algumas categorias essenciais para a manutenção da vida ou como forma de terapias únicas e exclusivas. Na maioria dos casos, são alimentos ultra processados em indústrias altamente sofisticadas e com total segurança em seus processos, onde não pode, sob hipótese alguma, haver risco de contaminação cruzada. Muitas vezes, são anos de pesquisa e desenvolvimento até chegar a fórmulas sofisticadas para poucos e raros pacientes.

Dentre tais categorias, podemos encontrar os alimentos para nutrição enteral, muito comuns e frequentemente utilizados em pacientes hospitalizados ou em atendimento domiciliar, além de alimentos para grupos populacionais específicos, como idosos, gestantes e crianças, por exemplo. Já as fórmulas dietoterápicas para erros inatos do metabolismo (2) são aqueles voltados para todos estes pacientes acometidos de doenças raras, muitas vezes nem tão raras assim.

No caso das aminoacidopatias, por exemplo, são fórmulas ou alimentos elaborados a partir da mistura de aminoácidos, podendo-se aportar carboidratos, ácidos graxos, vitaminas, minerais, dentre outros, de tal forma a fornecer todos os ingredientes que aquele paciente precisará para ter um desenvolvimento normal, à exceção do aminoácido a que tem restrição. No caso dos produtos para fenilcetonúricos, o item excluído é exatamente a fenilalanina…

O mesmo princípio valerá para as dietas voltadas para os casos de homocistinúria, acidemias glutáricas, doença do xarope de bordo, tirosinemia, por exemplo. Em todos estes casos, aquele aminoácido que não seria processado pela criança será excluído (ou estará em quantidade mínima) da dieta.

A tecnologia aplicada a esta área evoluiu tanto que atualmente há diversos tipos de apresentações para tais alimentos para situações metabólicas especiais: além da apresentação em pó (mais comum), já há também em líquido (pronta para beber), comprimidos e até mesmo em gel.

Embora o sabor metálico em função da mistura de aminoácidos isolados não fosse um problema para as crianças que tivessem o diagnóstico precoce, ele sempre foi uma barreira para a adesão das crianças com diagnóstico tardio (pois tiveram acesso aos sabores dos alimentos normais). Para este caso, houve também, mais recentemente, uma inovação disruptiva através de inúmeros produtos usando o GMP – Glicomacropeptídeo. Com sabor bem mais agradável, já que o GMP é oriundo do processo de produção de queijo e é a única proteína natural que não contém a fenilalanina em sua forma pura, este tipo de produto inovador deve permitir uma maior taxa de sucesso na adesão e manutenção do tratamento das crianças com EIM ao longo da vida.  

Para muitas mães que não conseguiam fornecer os nutrientes essenciais para um desenvolvimento saudável de seus filhos a partir de alimentos naturais (pois apenas alguns vegetais, carboidratos e gorduras são isentos ou com baixo teor de proteína), os alimentos para situações metabólicas especiais são a grande salvação, pois permitem a chance de uma vida normal: crescer, estudar, ter amigos, casar… Coisas tão simples mas que, sem um diagnóstico precoce e preciso e sem um alimento ultra-processado adequado à sua necessidade, seriam impossíveis!

(*) Carlos Eduardo Gouvêa, advogado e administrador público, é membro da diretoria da ABIAD, da SBTEIM e diretor da CMW Saúde & Tecnologia, além de presidente executivo da CBDL.

  1. https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programa-nacional-da-triagem-neonatal
  1. Resolução ANVISA RDC 460/2020 – http://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/5917783/RDC_460_2020_.pdf/83de90b7-0d9e-4c71-b414-eae4fc83a458

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1 Comentário

  1. Valéria Cristina Carreira

    Boa tarde, Carlos! Tudo bem? Gostei muito do seu artigo, era muito amiga da Dhalia e trabalhei muitos anos na Beckman e frequentava as reuniões na CBDL.

    Hoje não existe apenas a espectrometria de massa para realizar as aminoacidopatias, a Membrapure, empresa que eu represento, fabrica um equipamento voltado especificamente para a análise de aminoácidos, inclusive, já registrado no Brasil.