Existem catalogadas no mundo mais de 55 mil enfermidades, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, mais conhecida pela sigla CID. Desse total, há um grupo de aproximadamente 7 mil que ainda são pouco conhecidas pela medicina. São as chamadas doenças raras, que afetam 1,3 pessoas a cada 2.000 (ou 65 indivíduos a cada 100 mil).
Caracterizadas pela ampla diversidade de sinais e sintomas, geralmente crônicas, progressivas, degenerativas, incapacitantes e, muitas vezes, com elevado risco de morte, essas patologias costumam levar anos para serem diagnosticadas – em alguns casos, até 15 anos –, o que pode ser crítico para mitigar ou interromper a sua progressão.
A explicação para isso, segundo a Dra. Carolina Fischinger, médica geneticista do Serviço de Genética Médica (SGM) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal Erros Inatos do Metabolismo (SBTEIM), é a dificuldade em encontrar médicos capazes de reconhecer as doenças.
Na visão de Carolina, que é doutora em Genética e Biologia molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especializada em patologia clínica e genética bioquímica, para mudar este cenário e tornar a jornada pelo diagnóstico menos traumática e demorada, é fundamental que haja mais investimentos em educação no país.
Na visão de Carolina, para mudar este cenário e tornar a jornada pelo diagnóstico menos traumática e demorada, é fundamental que haja mais investimentos em educação no país.
Outro desafio do diagnóstico é que os pacientes geralmente são socialmente vulneráveis e, portanto, não têm acesso a exames especializados. A situação só muda quando a pessoa cai na mão de um médico geneticista, que tem treinamento para identificar doenças raras.
A médica foi entrevistada sobre o tema para a newsletter Futute Health. Confira:
FH: O que é preciso para que a busca pelo diagnóstico seja menos traumática e demorada?
CF: Educação, educação e educação. Hoje, não existe nas faculdades de Medicina uma formação específica para doenças raras, mas deveria haver. Precisamos treinar melhor os profissionais da saúde, e não só médicos, mas também enfermeiros e psicólogos, dentre outros, para que tenham um olhar mais amplo para os pacientes e saibam reconhecer os que apresentam múltiplos sinais e sintomas clínicos sugestivos de doença rara.
FH: Quais são as doenças que levam mais tempo para serem identificadas?
CF: É difícil estimar uma ou outra doença porque são muitas, mais de 7 mil. Mas posso citar alguns exemplos: Síndrome de Angelman, Síndrome de x frágil, síndrome de Prader Willi, síndrome de Rett, Doença de Gaucher, Fenilcetonúria e Porfiria.
FH: Levando em conta que a medicina evolui o tempo todo, o que há de novo na área de doenças raras?
O que há de mais novo é a possibilidade de encurtar a etapa do diagnóstico por meio de mapeamento genético. Antigamente, fazíamos a hipótese diagnóstica e só depois testávamos a mutação que imaginávamos ser a causadora da doença.
Hoje, não precisamos necessariamente fazer a hipótese diagnóstica. Ao suspeitarmos que o paciente tem uma doença rara, podemos pedir um sequenciamento genético de nova geração. Esses exames baratearam muito com o passar do tempo.
Os tratamentos para doenças raras também estão evoluindo. Temos, atualmente, as terapias genéticas (gênica, de edição gênica, de RNA). Antes dela, trabalhávamos com terapias para corrigir os efeitos do erro genético. Agora, trabalhamos direto nos genes, ou seja, tentando corrigir a causa em vez do efeito.
FH: Isso significa que poderá haver cura para doenças raras?
CF: Infelizmente, não. No começo, até se falou sobre a questão da cura, mas o que a terapia genética faz é modificar fenótipo, modificar a evolução clínica, e não curar.
FH: E quanto ao aconselhamento genético? Essa é uma ferramenta importante na prevenção e no tratamento dessas enfermidades?
CF: O aconselhamento genético é um processo realizado apenas pelo médico geneticista com o objetivo informar os pacientes sobre os riscos de, por exemplo, seus filhos apresentarem uma doença que existe na família e os riscos do casal ser portador de uma condição genética.
Ele tem como premissa não ser diretivo. Isso significa que jamais o médico vai dizer ao casal que não tenha filhos. O que ele vai fazer é informar sobre os riscos e as opções reprodutivas associadas àquele quadro clínico.
O mapeamento genético também deve ser confidencial e imparcial, sem julgamentos ou questionamentos sobre as decisões do paciente, mesmo que o risco seja elevado. Ele é indicado para casais que tiveram filho com alguma doença genética, casais com algum grau de parentesco e casais que tenham risco aumentado em função da sua ancestralidade.
FH: Você é muito envolvida em pesquisas clínicas sobre doenças raras. O que pode nos contar a respeito de seus estudos?
CF: Minha área de atuação em projetos de pesquisa envolve os erros inatos do metabolismo, que fazem parte do grupo de doenças raras. Dentro disso, o meu foco são as glicogenoses hepáticas e as doenças lisossômicas (gangliosidose GM1, mucopolissacaridose e lipofuscinose ceróide neuronal).
Hoje, temos um centro de pesquisa robusto no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, com vários pesquisadores. No nosso trabalho, avaliamos tanto possibilidades terapêuticas quanto acompanhamento da história natural dos pacientes, pois é fundamental para o desenvolvimento de novas tecnologias terapêuticas conhecer a doença e saber exatamente o que acontece com quem é acometido por ela.
FH: Como o Brasil está em relação ao resto do mundo quando o assunto é doenças raras?
CF: Minha impressão é que a América Latina está bem atrás da Europa e dos Estados Unido, mas o Brasil certamente é o país mais desenvolvido da região neste tema e é onde há mais estudos clínicos em andamento, além de aprovações pelos órgãos reguladores, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
FH: Para finalizar, o que você projeta para o futuro das doenças raras em termos de diagnóstico e tratamento?
CF: O futuro dos diagnósticos das doenças raras certamente está na genômica, nos estudos de biologia molecular. Para muitas dessas doenças não existem marcadores de diagnósticos bioquímicos, detectados nos exames de urina ou sangue. Então, temos de buscar as alterações no DNA do paciente.
Mas ainda assim vamos ter grandes desafios em relação a tratamentos. O ponto é que são doenças, na maioria das vezes, complexas e que interferem no funcionamento do DNA.
Também acredito que haverá importantes avanços nas técnicas cirúrgicas e no desenvolvimento de próteses que atendam pessoas com doenças raras. Só é difícil estimar em quanto tempo isso será realidade. (Com informações da Future Health – 03.06.22)